
Nas últimas semanas, tenho pensado muito sobre como o cinema brasileiro escolhe as histórias que decide contar. Eu amo nosso cinema, mas a ausência quase total de pessoas asiáticas nas narrativas ainda grita. Quando aparece, é caricatura. Quando não aparece, é silêncio.
A ditadura militar virou tema de dezenas de filmes, sempre retratando pessoas brancas com medo de perder liberdade e bens. Mas quase ninguém lembra que, três dias após o golpe, nove chineses foram presos sem provas, acusados de promover “revolução comunista”, condenados a 10 anos e expulsos do país. Foi um dos primeiros grandes casos de violação de direitos humanos do regime, e até hoje não houve reparação plena.
Nove vidas. Nove histórias apagadas.
Cadê esse filme?
Falo isso também porque, em menos de um mês, já perdi a conta das microagressões que levei na rua. Hoje mesmo fui empurrado de um ônibus por alguém que me chamou de “chinês” como ofensa. A lógica é a mesma: reduzir, desumanizar, encaixar em estereótipos.
O Brasil é feito de muitas vozes. Muitas cores. Muitos rostos.
Mas a câmera insiste em focar sempre nos mesmos.
Então deixo um convite para artistas, roteiristas, diretores, produtores:
Quando vamos contar histórias de pessoas asiáticas no Brasil com profundidade, dignidade e verdade?
Quando vamos iluminar o que ficou fora do enquadramento?
Eu gostaria muito de ver esse filme.
E se ninguém fizer… talvez seja hora de alguém levantar a câmera.

Ser empurrado não foi o suficiente e voltando para casa depois de apenas duas horas, eu ainda estava digerindo o episódio do ônibus quando presenciei outra cena no ponto de ônibus — daquelas que te lembram como o Brasil ainda tropeça nas próprias conversas.
Um senhor idoso chegou para uma menina que esperava o ônibus e, sem nem respirar, perguntou:
“Você é japonesa?”
Essa mania de abordar alguém já tentando “definir” sua origem sempre me incomodou. É quase automático no Brasil. Uma curiosidade que vem embalada em estereótipo. Nos EUA, se alguém te definisse assim no trabalho, você pode denunciar no RH com consequências gravíssimas para a pessoa, algo que o RH brasileiro está longe de entender. Aqui, ainda tratam como quebra-gelo.
A menina, super educada, respondeu:
“Não, eu sou indígena. Minha família tem origem indígena brasileira.”
O senhor, ao invés de ouvir… atacou:
“Mas você é branquinha demais pra ser índia.”
Eu senti o ar murchar entre as pessoas.
Ela, visivelmente desconfortável, ainda tentou aliviar:
“Se eu tomar sol, eu fico mais morena.”
E antes que o momento se dissipasse, a vida devolveu o caos: o ônibus passou direto, porque o senhor distraiu tanto na própria fala que esqueceu de dar sinal. Irritado, virou para um outro jovem e soltou:
“A geração de vocês não reclama, não protesta, e por isso o país está assim.”
Eu sempre evito confrontos desse tipo.
Mas nesse momento, alguma coisa em mim pediu espaço. Talvez o acúmulo das microagressões que levei nas últimas semanas. Talvez o empurrão de hoje. Talvez só cansaço mesmo.
Respirei e respondi:
“O país está assim por causa da sua geração, não da dos jovens.”
Silêncio.
Denso.
Cheio de histórias que ninguém conta.
O ônibus seguinte chegou. A menina subiu calada.
Eu fiquei ali pensando em como a gente precisa olhar para o Brasil inteiro — não só a versão que sempre esteve nos livros, nos filmes e na imaginação coletiva.
Se queremos um país melhor, precisamos aprender a perguntar menos “de onde você é?”
e começar a escutar quem as pessoas são.
E principalmente: parar de achar que sabedoria vem com idade.
Sabedoria vem com consciência.
Referência: https://www.gov.br/memoriasreveladas/pt-br/assuntos/noticias/o-201ccaso-dos-nove-chineses201d-59-anos-a-espera-de-justica













